Armazém 6

sábado, agosto 13, 2005

Não há fogo sem pânico

No dia 17 de Janeiro estava marcado um simulacro de incêndio no Armazém 6.
Deveria ser entre as 10 da manhã e o meio-dia.
Supostamente soariam os alarmes e Cabeça de Fósforo seria a responsável pela organização da saída das instalações, devidamente assistida por Sapo Atropelado.
Ainda antes do Natal já não passava um dia em que não se falasse nisso. A excitação era grande e havia sempre alguém que, durante o dia se lembrava de recordar aos demais: “ Faltam 26 dias pessoal!”, “ É assim: não se esqueçam que dia 17 temos o simulacro.”
À medida que o tempo ia passando os telefonemas a amigos e familiares iam aumentando de frequência, fazendo lembrar o facto.
“É verdade... Está quase, é já para a semana... mas é assim, eu acho que vai correr tudo bem..”
O telefone do armazém 6 nunca teve tanta actividade, sempre tocando com a sua estridente campainha, reclamava de cada vez um “armazenado” diferente. À vez lá iam, atendiam o telefone e ouvia-se: “É assim, eu não estou nervosa, mas estou um pouco tipo naquela. É assim, até vai ser um dia diferente, e é assim, se pensares até que é importante.”
E assim se viveu a expectativa durante semanas, contando os dias e as horas até à data de 17 de Janeiro, dia em que haveria uma movimentação à volta do Armazém 6, dia em que alguém de fora nos pudesse conhecer, dar importância.
Era o dia em que todos os “armazenados” seriam finalmente lembrados, protegidos.
Uns dias antes, foram impressos panfletos informativos sobre aquilo que se iria passar, de modo a todos estarem prevenidos e devidamente preparados. Fazia-se referência à extrema importância dos coordenadores da simulação, ao respeito e obediência que lhes deveríamos prestar. Tudo estava previsto ao detalhe: A saída do Armazém 6, a chegada dos bombeiros, a cronometragem dos tempos, o portão electrónico perfeitamente sincronizado para a entrada e saída dos humanos em questão.
Nos dois últimos dias, chegaram dois senhores bem vestidos que dedicaram algumas horas à inspecção de pormenores essenciais:
A planta do Armazém 6 foi afixada com pompa na copa, no meio de garfadas, massas e bocados de esparregado. Continha a indicação das saídas de emergência que supostamente deveriam existir. Estas saídas não estavam devidamente assinaladas e no próprio dia do simulacro, um segurança apareceu com uns autocolantes fluorescentes, consultou a planta afixada e cumpriu a sua missão.
No panfleto das informações de segurança, havia também a imposição da existência de uma lanterna no Armazém 6.
À última da hora Cabeça de Fósforo encomendou uma lanterna grande e potente.
Quando o funcionário da Personalis a entregou, Cabeça de Fósforo hesitou um pouco em relação ao sítio onde a deveria colocar. Reuniu com Sapo Atropelado e passados uns minutos anunciou:
“É assim: Eu tenho aqui esta lanterna que vai ficar fechada à chave na minha gaveta. É assim: Se algum dia houver tipo uns problemas quaisqueres, é assim vocês têm de me pedir a chave.”

Finalmente chegou o dia esperado.
Logo de manhã já se sentia o nervoso miudinho.
Por volta das 10:30 h soou o alarme.
- É assim: Ninguém se mexe do sítio!! – gritou Cabeça de Fósforo
Todos se agitaram, concentrados para não cederem à tentação de se levantarem das cadeiras. Ensurdecidos pelas sirenes, esperámos que a Cabeça de Fósforo telefonasse para confirmar se aquelas sirenes faziam parte do simulacro.
- É assim pessoal: ainda não é agora. É assim, foi um falso alarme, estejam calmos e continuem a trabalhar.
Mantivemo-nos nos nossos postos, ouviu-se um burburinho durante alguns minutos e depois tudo voltou à normalidade, exceptuando o pequeno nervoso que ainda pairava no Armazém 6.
As sirenes calaram-se mas logo de seguida voltaram a soar, mais ensurdecedoras que nunca.
Agora já nenhum dos “armazenados” se levantou. Continuámos a trabalhar, de cabeça enfiada nos agrafos, distraídos.
No meio das agudas vibrações, todos aguardávamos a voz de comando “É assim!”
Já os ouvidos agonizavam quando a voz de Cabeça de Fósforo se elevou acima das sirenes:
“É assim! Pessoal! É assim! Tudo lá para fora!”
Levantámo-nos, arrastámos os pés e saímos entediados.
Fazia muito frio, Sapo Atropelado tinha dito:
“Vá. Vá. Rápido, não há tempo.” Quando alguém quis voltar atrás para buscar a gabardina.
Sapo Atropelado e Cabeça de Fósforo seguiram então as instruções.
Formámos um grupo onde Cabeça de Fósforo ia à frente, destacada de cerca de 2 metros de distância. Sapo Atropelado seguia atrás de nós com os mesmos 2 metros de distância, mas, de vez em quando, chegava-se junto do grupo e com pancadinhas nas costas em jeito de empurrão ia dizendo:
“Vá. Vá. Com calma, todos com calma. Não tenham medo. Façam o que vos digo e tudo correrá bem”. Era uma voz doce e maternal que tinha a intenção de nos sossegar dentro do nosso horror.
Porém, alguém reparou que apenas o Armazém 6 (Existem mais 4 dentro daquele espaço) se movimentava e perante o comentário Cabeça de Fósforo, sempre atenta, respondeu:
“É assim: Nós vamos sair, se mais ninguém quiser vir, é assim, o problema é deles. É assim, estejam calados e fiquem calmos”
Tive, por momentos, a deliciosa sensação que o Armazém 6 podia estar realmente a arder. Até porque alguém, por sugestão, disse estar com a sensação de cheirar papel queimado.
Passámos o portão electrónico, que se abriu imponente à nossa frente. Ordenaram-nos que passássemos para o outro lado da estrada e ali ficámos, tiritando de frio...
Ao longe, avistámos dois senhores vestidos de preto que traziam walkie-talkies, uma pasta numa mão e um cronómetro na outra.
Afinal aquilo até parecia ter alguma importância.
- É assim, agora vão contar quanto tempo demoram a chegar os bombeiros – Sentenciou Cabeça de Fósforo.
Esperámos 5 minutos.
Esperámos 10 minutos.
Esperámos 15 minutos.
Não havia sinal nem de bombeiros nem de mais ninguém bem vestido.
Ao fim de 25 minutos de espera e perante as condições atmosféricas bastante agressivas, Cabeça de Fósforo resolveu tomar uma decisão.
- É assim. Eu vou voltar lá dentro para telefonar a saber o que se passa. É assim, acho que já passou algum tempo. Fiquem aqui e mantenham-se calmos.
Sapo Atropelado, no entretanto, tinha-se afastado do grupo e estava dentro do carro, com a chauffage no máximo, ouvindo música enquanto mandava SMS’s de amor a Isidro.
Eu meditava.
Que fazer em caso de incêndio real, se Cabeça de Fósforo se lesionar, onde vou eu buscar a lanterna? Que fazer se Sapo Atropelado entrar em pânico? Qual de nós lhe diria com voz delicodoce “Calma Sapo. Calma Sapo.”?
Cabeça de Fósforo demorou cerca de 7 minutos. Alguns dos “armazenados” resolveram não esperar mais e ir ao café espairecer.
Quando Cabeça de Fósforo regressou, os “armazenados” que ainda restavam já congelados, suspiraram de alívio. Finalmente vai haver uma decisão.
- É assim! Pessoal! Vamos voltar para dentro. Já está. Acabou o simulacro.
Fiquei surpreendida por saber que um simulacro consistia apenas numa tortura de 30 minutos ao frio. Não contestei pois já de regresso ao aconchegador Armazém 6, obtive de imediato a minha resposta.
Sapo Atropelado falava ao telefone com Isidro e ouvi claramente:
“Ah! Môri! Correu muito bem, sim. Eu acho que sim. Ninguém entrou em pânico. É. Os simulacros servem para ver se alguém entra em pânico.”
Percebi então qual o verdadeiro objectivo daquele dia, e percebi que tinha corrido bem. Para quê os bombeiros se conseguimos todos mantermo-nos calmos?
Quando me sentei e antes de tirar o primeiro agrafo ainda tive tempo de ouvir:
“Não sei, môri, talvez pó ano. Tábem môri, eu pergunto à Cabeça de Fósforo se podes vir. Beijinhos...”