Armazém 6

terça-feira, agosto 30, 2005

Adeus Aquilino

Hoje de manhã Aquilino morreu definitivamente. Para sempre.
Estava já moribundo desde Maio, ainda resistiu, só e tristemente abandonado até ao dia de hoje. 30 de Agosto 2005.
A 30 de Agosto de 1999 foi meu. Partilhámos as nossas vidas exactamente seis anos.
Foste o meu companheiro de aventuras e desventuras. Foste a minha marca pessoal em tudo e todos. Todos os dias me acompanhaste ao Armazém 6. Todos os dias lutámos juntos contra a atmosfera que nos rodeava.
Com calor arrefecia-te, com o frio passei horas a aquecer-te.
Ajudámos pessoas socialmente desfavorecidas.
Passámos juntos a inundações no Dafundo, quando as tartarugas do Aquário Vasco da Gama se julgaram livres por momentos.
O teu cheiro jamais esquecerei, a tua voz por vezes demasiado rouca, a tua luminosidade e a tua cor.
Viajámos juntos durante quilómetros seguidos, sempre juntos, no mesmo comprimento de onda e sempre à mesma velocidade.
Nunca te maldisse, mesmo quando me deixavas desiludida.
Incentivei-te nos momentos mais difíceis e sei que te esforçaste até ao limite das tuas forças.
Mas esse limite terminou hoje.
Um rapaz de calções, chinela de enfiar no dedo, camisa de manga cava de rede e de cabelos longos veio, levou-te friamente.
Nem tive tempo de me despedir.
Nem tive tempo de sentir o teu cheiro pela última vez...
Teu, apenas me resta a matrícula.
AQ-04-71

quarta-feira, agosto 24, 2005

Personagens - Surucucu

Surucucu é das personagens mais versáteis do Armazém 6.
É capaz de, com uma extraordinária perícia, sacar agrafos, contar folhas e passar folhas ao mesmo tempo. Frenética e motivada fá-lo apenas para impressionar Idália.
No entanto, com essa mesma perícia é também capaz de mudar de opinião com a mesma velocidade com que saca um agrafo.
Vive obcecada com o ordenado dos outros.
Todos os meses, o patrão bigodes, vem cheio de pressa, distribuir os cheques de cada um.
É sempre um dia excitante onde há sempre discussão. Ou melhor, não há discussão, porque no Armazém 6 todos têm o hábito de nunca falar com a pessoa correcta, fala-se sempre com aquele que pode estar de acordo com as críticas.
Em 6 anos de Armazém 6, foram poucas as discussões cara-a-cara a que assisti.
Surucucu é mestra nisso.
Nunca discute com ninguém (à excepção de uma vez com um certo Senhor, que viria depois dessa discussão a ser apelidado de Dr. da Merda), mas consegue pôr todos a amar alguns, alguns a odiar todos, todos a odiar todos, alguns a amar alguns mas nunca todos a amar todos.
Surucucu vive apaixonada por Bolotas, um outro "armazenado" que raramente está presente, o que dá azo a muito falatório. Desde há algum tempo conseguiu os seus intentos e vive uma relação apaixonada com Bolotas, apesar de estar convencida de que ninguém ainda o constatou.
Surucucu é aquilo a que se pode chamar de uma "Boazona".
Bolotas é um marialva que apenas viu nela uma oportunidade de passar "bons momentos".
Certo dia, dia de pagamento, o patrão Bigodes veio com a sua pressa distribuir os devidos salários.
No dia seguinte Surucucu apareceu no Armazém 6, chorosa de olhos vermelhos e tristonha, dizendo que tinha perdido todo o dinheiro (que entretanto tinha levantado em numerário) no supermercado Jumbo. Inexplicavelmente, tinha deixado o porta-moedas em cima do balcão e num momento de distracção, quando se tinha virado para chamar a atenção de seu filho, o porta-moedas cheio de notas tinha desaparecido.
A história era comovente: "Mas ca ganda galo xavala!", "É assim, tu deves agora é tentar encontrar o dinheiro. É assim, se alguém honesto encontrou o teu porta-moedas, é assim ha-des de tê-lo de volta. É assim não te preocupes, tudo se há-de resolver. É assim, afinal tu puzéstezío aonde?", dizia Cabeça de Fósforo tentando consolar Surucucu que chorava e chorava e chorava enquanto tentava mais uma vez explicar o que tinha acontecido.
Mas o dinheiro não apareceu...
Surucucu teve de tomar uma decisão.
Telefonou chorosa ao patrão Bigodes explicou-lhe o que tinha acontecido e suplicou-lhe que lhe desse outro salário, que ela no fim do outro mês lhe pagaria em prestações e aos poucos.
O patrão Bigodes mostrou-se sensível e receptivo. Disse que ia ponderar.
O dinheiro na realidade não se perdeu no Jumbo. Bolotas na discoteca, enquanto dançava estonteado pelo alcoól, agarrou no salário, comprou uma prenda a Surucucu, levou-a a passar a noite num hotel de luxo em Lisboa e "perdeu" o resto.
Na semana seguinte patrão Bigodes regojizou-se com o direito que teve a um beijo agradecido de Surucucu ao levar-lhe um segundo salário...

segunda-feira, agosto 22, 2005

Piromania

De acordo com as mais sábias opiniões no Armazém 6, descobri hoje que "a causa dos incêncios no nosso País é pura e simplesmente a preguiça dos bombeiros voluntários".
Esta opinião veio de alguém que parece orgulhar-se quando diz:
"Pois fiquem sabendo que o maior incêndio que, é assim, foi o da Pampilhosa da Serra, é perto da terra da minha mãe!"
Pensei que, com algum jeitinho, talvez ela conseguisse aparecer na televisão.

sábado, agosto 20, 2005

Lapónico

Jogava-se aos " Países" no Armazém 6:
- Nome de cidade começada por "E"...
- Elsínquia!

sexta-feira, agosto 19, 2005

Personagens - Idália

A Idália é a primeira a ser apresentada do lado de cá.
É a coordenadora deste lado mas deve explicações ao lado delas.
Do lado de cá existem quatro tipos de tarefas diferentes que se podem fazer.
Cada um dos "armazenados" faz uma tarefa da parte da manhã e outra da parte da tarde, nunca repete a mesma tarefa durante todo o dia.
Uma das funções da Idália é fazer a distribuição dessas tarefas. Fá-lo, portanto, duas vezes por dia.
As tarefas são: Tirar agrafos, passar folhas, contar folhas ou teclar no computador.
"Tu! Vai sacar agrafos!, tu teclas, tu passas as folhas e tu côntazías!"
Muitas vezes, esta distribuição não é necessária pois cada um de nós já sabe onde vai parar e, voluntariamente se coloca no seu posto de trabalho para as próximas 4 horas.
No entanto, a Idália com cada vez mais frequência pode dizer:
"Façam o que entenderem!" Vira as costas, vai para um computador investigar, mastiga pastilha elástica freneticamente, cantarola nervosamente e ai de quem lhe perguntar seja o que for.
Idália namora com o talhante. Este talhante foi casado e tem uma filha. A ex-mulher do talhante parece que não é muito equilibrada e manda sistematicamente mensagens escritas para o telemóvel da Idália, lançando maus-olhados e desejando que esta morresse.
Em resumo: odeiam-se.
O talhante não reage perante esta situação e mantém contacto frequente com a ex-mulher, até porque têm uma filha em comum.
Idália recusa aceitar que o talhante continue a falar com a louca da ex-mulher e confrontou-o com a situação.
O talhante prometeu-lhe então que apenas falaria com a ex-mulher em casos estritamente necessários.
Mas a Idália nunca quis acreditar e pensou num plano.
A melhor maneira de controlar seria poder ter acesso às chamadas de telemóvel feitas por ele, a que horas, durante quanto tempo e para quem.
Empenhou-se então em descobrir qual a palavra-passe dele na factura detalhada disponível online no portal da operadora.
Não é tarefa fácil descobrir a palavra-passe de alguém, mesmo que se conheça muito bem a pessoa em questão. Mas o empenho foi grande, ao descobrir a palavra Idália poderia saber, finalmente, se o talhante lhe mente ou não.
Tentou primeiro o seu nome. Nada.
Depois o nome dele. Sem êxito.
O nome do hotel onde dormiram juntos pela primeira vez. Népia.
O problema estava difícil de resolver para Idália. Nunca o talhante poderia ter uma palavra passe que não a incluísse a ela de algum modo, directo ou indirecto. Ainda pensou no nome da filha dele, apesar de tudo é sempre algo de importante na vida dele, mas nada parecia fazer abrir a irritante janelinha do login da operadora de telemóveis.
Era um caso quase impossível de resolver.
Idália esteve quase para desistir.
Na realidade, praticamente que desistiu.
Todas as manhãs, via-a, mastigando a sua pastilha, desesperada, tentando mais uma ou outra palavra. Sempre que lhe ocorria algo, ia correndo para um computador dísponivel, tentá-la.
Passaram-se semanas...
Até que um dia...
Cabeça de Fósforo teve um papel importantíssimo na vida de Idália, chegou eufórica com um cachecol colorido e colocou-o em cima do monitor do computador.
Idália olhou, pensou, correu para o computador mais próximo e escreveu:
"Sporting".
Desde esse dia que no Armazém 6, sempre que o talhante telefona à ex-mulher, todos os "armazenados" do lado de cá vivem momentos de verdadeiro stress psicológico. Idália oprime com o seu sofrimento, que se transforma em ordens disparatadas, respostas ríspidas, cantarolares permanentes e milhões e milhões e milhões de batidas de maxilar em pastilha elástica.

terça-feira, agosto 16, 2005

Parabólicas

Voltei hoje ao Armazém 6.
Soube da notícia do avião grego que caiu a caminho de "Antenas"...

sábado, agosto 13, 2005

Não há fogo sem pânico

No dia 17 de Janeiro estava marcado um simulacro de incêndio no Armazém 6.
Deveria ser entre as 10 da manhã e o meio-dia.
Supostamente soariam os alarmes e Cabeça de Fósforo seria a responsável pela organização da saída das instalações, devidamente assistida por Sapo Atropelado.
Ainda antes do Natal já não passava um dia em que não se falasse nisso. A excitação era grande e havia sempre alguém que, durante o dia se lembrava de recordar aos demais: “ Faltam 26 dias pessoal!”, “ É assim: não se esqueçam que dia 17 temos o simulacro.”
À medida que o tempo ia passando os telefonemas a amigos e familiares iam aumentando de frequência, fazendo lembrar o facto.
“É verdade... Está quase, é já para a semana... mas é assim, eu acho que vai correr tudo bem..”
O telefone do armazém 6 nunca teve tanta actividade, sempre tocando com a sua estridente campainha, reclamava de cada vez um “armazenado” diferente. À vez lá iam, atendiam o telefone e ouvia-se: “É assim, eu não estou nervosa, mas estou um pouco tipo naquela. É assim, até vai ser um dia diferente, e é assim, se pensares até que é importante.”
E assim se viveu a expectativa durante semanas, contando os dias e as horas até à data de 17 de Janeiro, dia em que haveria uma movimentação à volta do Armazém 6, dia em que alguém de fora nos pudesse conhecer, dar importância.
Era o dia em que todos os “armazenados” seriam finalmente lembrados, protegidos.
Uns dias antes, foram impressos panfletos informativos sobre aquilo que se iria passar, de modo a todos estarem prevenidos e devidamente preparados. Fazia-se referência à extrema importância dos coordenadores da simulação, ao respeito e obediência que lhes deveríamos prestar. Tudo estava previsto ao detalhe: A saída do Armazém 6, a chegada dos bombeiros, a cronometragem dos tempos, o portão electrónico perfeitamente sincronizado para a entrada e saída dos humanos em questão.
Nos dois últimos dias, chegaram dois senhores bem vestidos que dedicaram algumas horas à inspecção de pormenores essenciais:
A planta do Armazém 6 foi afixada com pompa na copa, no meio de garfadas, massas e bocados de esparregado. Continha a indicação das saídas de emergência que supostamente deveriam existir. Estas saídas não estavam devidamente assinaladas e no próprio dia do simulacro, um segurança apareceu com uns autocolantes fluorescentes, consultou a planta afixada e cumpriu a sua missão.
No panfleto das informações de segurança, havia também a imposição da existência de uma lanterna no Armazém 6.
À última da hora Cabeça de Fósforo encomendou uma lanterna grande e potente.
Quando o funcionário da Personalis a entregou, Cabeça de Fósforo hesitou um pouco em relação ao sítio onde a deveria colocar. Reuniu com Sapo Atropelado e passados uns minutos anunciou:
“É assim: Eu tenho aqui esta lanterna que vai ficar fechada à chave na minha gaveta. É assim: Se algum dia houver tipo uns problemas quaisqueres, é assim vocês têm de me pedir a chave.”

Finalmente chegou o dia esperado.
Logo de manhã já se sentia o nervoso miudinho.
Por volta das 10:30 h soou o alarme.
- É assim: Ninguém se mexe do sítio!! – gritou Cabeça de Fósforo
Todos se agitaram, concentrados para não cederem à tentação de se levantarem das cadeiras. Ensurdecidos pelas sirenes, esperámos que a Cabeça de Fósforo telefonasse para confirmar se aquelas sirenes faziam parte do simulacro.
- É assim pessoal: ainda não é agora. É assim, foi um falso alarme, estejam calmos e continuem a trabalhar.
Mantivemo-nos nos nossos postos, ouviu-se um burburinho durante alguns minutos e depois tudo voltou à normalidade, exceptuando o pequeno nervoso que ainda pairava no Armazém 6.
As sirenes calaram-se mas logo de seguida voltaram a soar, mais ensurdecedoras que nunca.
Agora já nenhum dos “armazenados” se levantou. Continuámos a trabalhar, de cabeça enfiada nos agrafos, distraídos.
No meio das agudas vibrações, todos aguardávamos a voz de comando “É assim!”
Já os ouvidos agonizavam quando a voz de Cabeça de Fósforo se elevou acima das sirenes:
“É assim! Pessoal! É assim! Tudo lá para fora!”
Levantámo-nos, arrastámos os pés e saímos entediados.
Fazia muito frio, Sapo Atropelado tinha dito:
“Vá. Vá. Rápido, não há tempo.” Quando alguém quis voltar atrás para buscar a gabardina.
Sapo Atropelado e Cabeça de Fósforo seguiram então as instruções.
Formámos um grupo onde Cabeça de Fósforo ia à frente, destacada de cerca de 2 metros de distância. Sapo Atropelado seguia atrás de nós com os mesmos 2 metros de distância, mas, de vez em quando, chegava-se junto do grupo e com pancadinhas nas costas em jeito de empurrão ia dizendo:
“Vá. Vá. Com calma, todos com calma. Não tenham medo. Façam o que vos digo e tudo correrá bem”. Era uma voz doce e maternal que tinha a intenção de nos sossegar dentro do nosso horror.
Porém, alguém reparou que apenas o Armazém 6 (Existem mais 4 dentro daquele espaço) se movimentava e perante o comentário Cabeça de Fósforo, sempre atenta, respondeu:
“É assim: Nós vamos sair, se mais ninguém quiser vir, é assim, o problema é deles. É assim, estejam calados e fiquem calmos”
Tive, por momentos, a deliciosa sensação que o Armazém 6 podia estar realmente a arder. Até porque alguém, por sugestão, disse estar com a sensação de cheirar papel queimado.
Passámos o portão electrónico, que se abriu imponente à nossa frente. Ordenaram-nos que passássemos para o outro lado da estrada e ali ficámos, tiritando de frio...
Ao longe, avistámos dois senhores vestidos de preto que traziam walkie-talkies, uma pasta numa mão e um cronómetro na outra.
Afinal aquilo até parecia ter alguma importância.
- É assim, agora vão contar quanto tempo demoram a chegar os bombeiros – Sentenciou Cabeça de Fósforo.
Esperámos 5 minutos.
Esperámos 10 minutos.
Esperámos 15 minutos.
Não havia sinal nem de bombeiros nem de mais ninguém bem vestido.
Ao fim de 25 minutos de espera e perante as condições atmosféricas bastante agressivas, Cabeça de Fósforo resolveu tomar uma decisão.
- É assim. Eu vou voltar lá dentro para telefonar a saber o que se passa. É assim, acho que já passou algum tempo. Fiquem aqui e mantenham-se calmos.
Sapo Atropelado, no entretanto, tinha-se afastado do grupo e estava dentro do carro, com a chauffage no máximo, ouvindo música enquanto mandava SMS’s de amor a Isidro.
Eu meditava.
Que fazer em caso de incêndio real, se Cabeça de Fósforo se lesionar, onde vou eu buscar a lanterna? Que fazer se Sapo Atropelado entrar em pânico? Qual de nós lhe diria com voz delicodoce “Calma Sapo. Calma Sapo.”?
Cabeça de Fósforo demorou cerca de 7 minutos. Alguns dos “armazenados” resolveram não esperar mais e ir ao café espairecer.
Quando Cabeça de Fósforo regressou, os “armazenados” que ainda restavam já congelados, suspiraram de alívio. Finalmente vai haver uma decisão.
- É assim! Pessoal! Vamos voltar para dentro. Já está. Acabou o simulacro.
Fiquei surpreendida por saber que um simulacro consistia apenas numa tortura de 30 minutos ao frio. Não contestei pois já de regresso ao aconchegador Armazém 6, obtive de imediato a minha resposta.
Sapo Atropelado falava ao telefone com Isidro e ouvi claramente:
“Ah! Môri! Correu muito bem, sim. Eu acho que sim. Ninguém entrou em pânico. É. Os simulacros servem para ver se alguém entra em pânico.”
Percebi então qual o verdadeiro objectivo daquele dia, e percebi que tinha corrido bem. Para quê os bombeiros se conseguimos todos mantermo-nos calmos?
Quando me sentei e antes de tirar o primeiro agrafo ainda tive tempo de ouvir:
“Não sei, môri, talvez pó ano. Tábem môri, eu pergunto à Cabeça de Fósforo se podes vir. Beijinhos...”

quarta-feira, agosto 10, 2005

Vegetal

Estou vegetando de férias.
Esforço-me por entar em simbiose com o verde das margens do rio Douro, Côa, Tua, Sabor e Tâmega.
Sinto que estou quase a conseguir fazer a fotossíntese.
Em breve novas e maravilhosas histórias serão publicadas.
Não desista desta aventura.